sexta-feira, 20 de março de 2015

Cultura, violência ou diversão?

Paulo Klingelhoefer de Sá,
médico e coordenador do curso de Medicina
da Faculdade de Medicina de Petrópolis/Fase
A polêmica sobre a existência ou não do trote, de sua permissão até determinado limite, o dito vexatório, pela lei, está associada a um processo histórico de rituais de passagem que a humanidade utiliza desde que se entende por gente.

Estamos sempre a refletir o quanto de agressão podemos tolerar ou não. Quem controla e fiscaliza o quão vexatório os trotes são ou não? Só prestamos atenção quando a violência explícita se torna presente e indiscutível? As lesões de cunho moral, de exclusão social e de bullying são registradas em que delegacia? Quando e como? Por quem? Com certeza por uma minoria, uma vez que o medo impera sob a batuta da exclusão social imposta ao calouro, pelo veterano.

Não, na verdade não temos coragem de enfrentar o apoio que a sociedade dá à realização desses eventos estúpidos, agressivos, que em nada representam a nobreza da raça humana. Sim, porque quem promove e ameaça são os mesmos que foram ameaçados no ano anterior e que prometem que no ano deles será diferente, mas o que vemos é que a cada ano piora a situação em um ciclo de vingança sem fim.

Poderia comparar com o cigarro. Por muitos e muitos anos era sabido e comprovado que o cigarro faz mal à saúde, porém a legislação foi lentamente caminhando na direção da coerção do ato de fumar. Anos e mais anos se passaram, milhares de pessoas morreram por força do mal causado pelo cigarro e só agora o cerco é apertado em todo território nacional. Qual era o principal problema? A questão econômica de grandes grupos pressionando e, principalmente, a cultura sustentada pela sociedade de que fumar era um estilo, um valor, um diferencial positivo na imagem do sujeito.

O calouro que ingressou na faculdade gosta de mostrar o cabelo raspado, de circular todo sujo mostrando para toda a sociedade que ele conseguiu passar num dos mais estreitos funis de ingresso no nível superior de ensino, o Curso de Medicina, por exemplo. A sua sujeira é como um cigarro pendurado na boca do cowboy, dá um ar de superioridade, de valor maior, de bravura e sucesso, de diferenciação diante de uma massa. Esse valor, culturalmente desenvolvido, agora é complementado por uma mentalidade que patrocina episódios de violência, fomentados intensamente pelas redes sociais. O que era um ritual de passagem de boas-vindas, reconhecimento e diversão, deu lugar à estupidez.

O que podemos esperar de uma sociedade que patrocina, assiste e apoia o combate sangrento, agressivo e estúpido, entre pessoas, como nas lutas que vimos na televisão, intituladas de esporte, UFC e outras siglas. Filmes, videogames, aplicativos de celular que estimulam o ato violento e sem sentido em suas telas. Observamos a naturalização da violência e o estabelecimento de níveis toleráveis até determinado ponto e sob condições.

Alunos morrem, meninas são estupradas, pessoas são profundamente constrangidas em sua moral e valores ainda em formação, como nos adultos jovens, mas nos mantemos lentos como na questão do cigarro e outras tantas. O nazismo e fascismo também cresceram naturalizando ideais aberrantes. O movimento radical no Oriente Médio também sinaliza claramente esse processo e com adesão de jovens do mundo inteiro, como nas recentes notícias vinculadas pela mídia.

A Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP), não diferente de todos os demais cursos de nível superior, também enfrenta esse problema. Os estudantes de Medicina, que deveriam ser os grandes defensores do desenvolvimento e da formação no cuidado à saúde da sociedade, estabelecem como conceito base para o ingresso nessa nobre profissão, a submissão, o constrangimento, a violência física e moral, a exclusão e discriminação social. Assim como a USP e outras renomadas universidades ficamos atônitos com a ostensiva desobediência dos estudantes às normas instituídas de proibição a esse tipo de prática. Convocamos à sociedade organizada, Centros de Defesa dos Direitos Humanos, OAB, Conselhos Regionais e Federal de Medicina, Magistraturas, Veículos de Mídia, Partidos Políticos e demais organizações sociais que pautem esse tema em suas reflexões e decisões a ponto de estabelecer um basta nesse processo absurdo e perigoso que se instaurou na nossa sociedade. A impunidade desses jovens chegou ao limite.

A FMP, em seu regulamento, deixa clara e explícita a proibição do trote em seu campus e estabelece as medidas disciplinares cabíveis até o ponto do jubilamento, quando necessário. Mas mesmo assim, nas vias públicas os alunos desafiam a todos, inclusive à ordem pública, com práticas imorais, com agressões verbais e físicas, obrigando a população a ter que testemunhar essa barbaridade. O descaso e o não cumprimento da lei estabelecem a impunidade e promovem uma nova cultura. Manda quem tem dinheiro: “compro as autoridades, corrompo e suborno quem aparecer no meu caminho, porque muito pouco se faz a respeito”.

Quando teremos um posicionamento contundente das autoridades públicas a respeito, como na Lei Seca no trânsito? Quando estabeleceremos um pacto em nome da preservação da vida coibindo integralmente essas práticas?


Enquanto isso, jovens vão morrendo....... 

Autor: Paulo Klingelhoefer de Sá, médico e coordenador do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Petrópolis/Fase

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